Já fazia alguns dias que Mowgli havia voltado pro jângal. Kaa estava mudando de pele pela ducentésima vez e Mowgli foi felicitá-la.
Encontrou Kaa enrolada em espiral no solo, tendo ao lado sua velha pele, ressecada e retorcida.
A amizade dos dois era antiga desde quando ela o tinha salvado nas Tocas frias e a cobra ajeitou-se nos ombros do rapaz para mais uma de suas longas conversas:
- Rãzinha há três ou quatro luas passadas fui caçar nas Tocas Frias e encontrei a Naja Branca – ela é a mãe de todas as serpentes, e mais velha que o mundo, e me falou de coisas acima de minha compreensão e mostrou-me coisas que eu nunca tinha visto antes.
Mowgli muito curioso quis logo saber de tudo e foi perguntando:
- Debaixo da terra Kaa?
- Sim, ela mora sob uma cidade em ruínas - lá nas Tocas Frias, hoje é só uma cidade recoberta pela selva toda destruída , mas já foi o palco e domínio de reis poderosos, donos de muitos cavalos e elefantes. A Naja Branca foi colocada ali para ser guardiã de um tesouro que está até hoje no mesmo lugar.
- E o que é este tesouro? É bom de comer?
Mowgli não sabia o que era um tesouro. E kaa respondeu:
- Não é caça, e se você tentar come-lo teria quebrado todos os seus dentes! Mas a Naja Branca disse que qualquer homem teria dado a própria vida somente para vê-lo, ou para possuí-lo. Disse Kaa.
Mowgli então pensou e falou pra Kaa:
- Estas coisas devem ser "caça nova". Você pode me levar lá! Eu também sou humano, preciso, então, ver esse tal tesouro.
Assim, seguiram os dois amigos para visitar a cobra branca. Chegando lá...
- Boa caçada! Disse Mowgli, que nunca abandonava as boas maneiras, ao entrar. Tinha aprendido isso com seu mestre Baloo.
A grande cobra foi logo perguntando:
-Como está a cidade lá em cima? Devo ter ficado surda, pois há muito não escuto o gongo de guerra, disse ela, sem responder à saudação de Mowgli.
Kaa se adiantou e respondeu:
- Já te disse que não existe mais cidade lá em cima. Sem esperança que a velha naja entendesse, pois era visível para qualquer um que já há muito tempo ela tinha perdido o juízo.
Sem dar importância a Kaa a Naja voltou a falar:
- Sou guardiã dos maravilhosos e valiosos tesouros do Rei. O rajá Kurrun construiu esta abóbada sobre mim, para que eu aqui ficasse protegendo seu tesouro e a ensinando a morte aos que aparecessem. Vê estes "homens" - disse olhando para alguns crânios que se espalhavam pelo no chão – Vieram roubar o tesouro. Falei-lhes no escuro e eles silenciaram para sempre.
Mowgli correu os olhos pela caverna, curioso para ver e entender e conhecer o que seria o tão falado e valioso tesouro.
No fundo viu um punhado de coisas brilhantes.
Mowgli apanhou algumas moedas de ouro caídas no chão e tentou mordê-las e concluiu eram duras e sem gosto.
As facas o interessavam, mas não eram tão boas quanto a que tinha trazido da aldeia dos homens.
Que tesouro mais chato pensou. Não via nada que sirva.
Por fim, depois de muito mexer, achou algo realmente fascinante. Estava meio enterrado em um amontoado de joias era um aguilhão de elefante.
Os caçadores de elefantes o usavam pra conduzir os elefantes presos , mais Mowgli não sabia pra que servia , tinha apenas gostado do objeto porque era enfeitado com figuras de elefante, ele achou lindo e queria mostrar a seu amigo Hathi – o elefante.
A peça tinha um enorme rubi redondo, no cabo havia uma larga barra de turquesas azuis e mais abaixo um adorno de flores feitas de rubis com folhas de esmeralda. A ponta era em formato de espeto feito de ouro e adornado com gravações representando caçadas de elefantes.
- E aí, meu menino? A visão deste tesouro não vale a morte? Perguntou a naja.
- De jeito algum! Para que quero isto que chamas de tesouro? Se me deres este aguilhão, ficarei agradecido.
- Para levar o aguilhão vc deve lutar comigo menino disse a cobra.
Mowgli aceitou lutar com a cobra e de repente percebeu que de tão velha a cobra não poderia mordê-lo, pois não tinha mais presas.
Ao ser descoberta, a grande naja ficou muito envergonhada e pediu que o menino não dissesse nada e que levasse o que desejava.
Mowgli mostrou o aguilhão que havia escolhido. E a grande Naja branca o advertiu:
- Se desejas este aguilhão, podes levá-lo. Mas aviso: ele é a morte!
Mowgli e Kaa sentiram prazer em voltar novamente à luz do dia. Os raios do sol fizeram o aguilhão brilhar e isso deixou Mowgli contente.
- Tenho de mostrar isso à Bagheera - pensou Mowgli despedindo-se de kaa
Bagheera, a pantera negra, conhecia um pouco sobre homens, pois havia nascido em um circo da cidade e fugido para o Jângal. Ao encontra-la mostrou o aguilhão.
Observando melhor o aguilhão Mowgli pensou:
- É bonito, mas a Naja Branca tem razão. Significa dor para os elefantes. Vendo as gravações de caçada de elefante que tinham desenhado no objeto.
E baguera acrescentou:
- E morte para os homens.
Mowgli não podia compreender por que este objeto causaria morte para os homens, mas pôde compreender, olhando, para o afiado gancho, como ele poderia trazer dor para os elefantes.
E num gesto rápido, jogou o aguilhão pelos ares.
- Desse modo minhas mãos ficam limpas da morte e da dor.
O sol já se punha todos se recolheram para dormir. Nos sonhos Mowgli via desfilando a sua frente às pedras brilhantes que havia visto na toca do tesouro da cobra branca. Ao acordar, resolveu ir dar mais uma olhada no aguilhão.
Curiosa, Bagheera o seguiu.
Procuraram em vão, o aguilhão não estava mais ali.
Bagheera, muito atenta, notou pegadas deixadas no chão, próximas do objeto e logo concluiu que um homem o havia levado.
Em vista disso, Mowgli curioso resolveu segui-las, a fim ver se o aguilhão realmente significava a morte, como todos haviam dito. E como seria a cara da morte.
As pegadas estavam frescas e nítidas e isso facilitava a tarefa de segui-las.
De repente começaram a notar, que o molde dos dedos começou a se mostrar mais esparramado o queria dizer que o homem que havia pegado o aguilhão estava correndo.
Repentinamente as pegadas viravam para a direita.
- Por que alguém mudaria tão subitamente seu caminho? Perguntou Mowgli.
- Vamos investigar! Exclamou Bagheera, e não precisou ir muito longe para perceber que outras pegadas apareciam.
Eram de um homem com pés menores, com os dedões voltados para dentro.
Para entender o que havia acontecido, Mowgli seguiu a trilha dos "pés pequenos" e Baguera a dos "pés grandes".
Caminharam assim por meia hora, sendo que as pegadas, afundadas no chão, mostravam que a corrida se acelerava cada vez mais.
Num determinado momento elas se encontraram, e menos de 5 metros a frente deles , jazia um homem de pés grandes com uma flecha fincada no seu peito
- A cobra não estava tão velha e louca como você supôs, irmãozinho, disse Bagheera. Uma morte pelo menos existe.
Continuaram sua busca, seguindo apenas as pegadas feitas pelos "pés pequenos".
Não demorou muito até chegarem numa clareira, onde encontraram os resto de fogo de uma fogueira e estendido, morto, com os pés nas cinzas, um corpo de homem com "pés pequenos".
Mowgli concluiu:
- A mãe Naja conhecia bem a raça dos homens.
Em volta da fogueira, pegadas de quatro homens calçados podiam ser vistas e indicavam quem tinha assassinado o homenzinho.
Seguir quatro homens calçados não seria difícil, pois suas pegadas revelavam que andavam mais devagar e além do mais não deveriam estar muito longe. As brasas da fogueira ainda brilhavam.
Andaram por uma hora até que sentiram cheiro de fumaça, os homens haviam parado para fazer uma refeição.
Farejaram e espionaram por um tempo, até que Bagheera deu um súbito salto e grito:
- Este também foi morto!
Ao lado do corpo de um homem gordo, uma trouxa aberta mostrava restos de um pó branco. Mowgli disse então:
- Os homens matam por tão pouco, este foi morto pela farinha que carregava. Vou levar algumas rãs gordas para a Naja se alimentar, pois ela é sábia. Com este são três mortes na trilha do aguilhão.
Não tinham andado muito atrás das pegadas, quando viram corvos rondando uma clareira; o fim da história parecia estar lá.
Em volta de uma fogueira se apagando, havia três corpos sem vida.
Um caldeirão sob a fogueira trazia restos do almoço do trio, preparado com a farinha roubada.
Mowgli quebrou um pedaço do seu conteúdo já queimado e endurecido, e exclamou,cuspindo:
- É a maçã da morte!
O homem gordo, da trouxa, envenenou a comida para matar os outros três, mas foi morto antes disso.
Ao lado da fogueira que teimava ainda em soltar algumas faíscas, estava o aguilhão, brilhando, sem dar-se conta do mal que causara.
- Como fiz bem em jogá-lo fora, disse Mowgli. Se ficar aqui, continuará a matar homens, um atrás do outro. Voltará para a Mãe das Najas.
Duas noites mais tarde, quando a Naja Branca, no escuro de sua caverna, estava no meio de suas lamentações, o aguilhão apareceu zumbindo e foi cair no seu velho leito de moedas.
- Mãe das Najas, disse Mowgli, arranja uma cobra nova e bem venenosa para te ajudar a guardar os tesouros do rei, de modo que homem nenhum saia desta sua caverna com vida! Realmente o aguilhão carrega a morte.
Livro da Selva - Rudyard Kipling
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